Os Óculos

Eu era um par de óculos. Minha primeira lembrança é estranha: Estava eu, ao lado de muitos outros pares da minha espécie estendido em uma vitrine. Os dias passavam e vez ou outra apareciam algumas pessoas que me pegavam, colocavam no rosto, olhavam-se no espelho e... Devolviam–me para a vitrine.
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Era como uma criança que esperava adoção. Muitos dos meus amigos óculos tiveram mais sorte e foram adotados mais rapidamente. Era uma festa e uma tristeza quando um deles era escolhido. Eu rezava todos os dias para que o Deus dos óculos não se esquecesse de mim.
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Finalmente o meu dia chegou. Uma moça, muito bonita, depois de testar alguns dos meus companheiros, me escolheu. Foi o dia mais feliz da minha vida! Fui para uma sala onde um senhor barrigudo me instalou um par de lentes muito pesadas, mas era um preço mínimo a se pagar: finalmente eu iria ser usado!
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A moça veio no outro dia e nem quis que eu fosse na caixinha que me arranjaram, fui direto para o seu rosto. Saímos da loja (que era tudo o que eu conhecia até então) e vi coisas maravilhosas: Ruas, pessoas andando nas calçadas, o velocímetro de um carro, um espelho muito maior que o da loja! Conheci também um negócio quadrado chamado televisão que mostrava imagens de casais se beijando, guerras em lugares distantes, desenhos animados! Eu estava no paraíso!
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É verdade que às vezes a minha dona me esquecia em algum lugar(geralmente no canto do sofá), mas ela tinha um outro par de óculos que usava para me procurar e sempre me achava. De noite, ela me colocava ao lado deste amigo em um criado mudo para que eu ficasse conversando com ele a noite toda. Tinha muita pena dele, pois só era usado para me procurar, mas eu não tinha nem um pingo de piedade: ficava falando que ele era um inútil, e que não tinha a menor possibilidade de conhecer as coisas que eu conhecia. Apelidei-o de “modelo antigo”.
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O “modelo antigo” ficava quieto. Acho que se pudesse chorar, não pensaria duas vezes, mas como óculos que é óculos não chora, ficava lá, quieto, resignado, com suas perninhas cruzadas ao meu lado.
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Um dia minha dona pisou no “modelo antigo” e o quebrou. Coitadinho, foi direto para o lixo. Confesso que nem fiquei chateado, pois ele era um inútil mesmo! Só servia para me achar e olhe lá. Certamente a minha dona iria tomar mais cuidado comigo a partir daquele dia. No mesmo dia voltamos na loja onde eu tinha sido comprado e minha dona escolheu um novo par de óculos para substituir o “modelo antigo”. Ela me amava muito, estava preocupada em não me perder, pensava eu.
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No outro dia fomos buscar o “novo modelo antigo”, mas algo aconteceu que eu não esperava: Ao invés de colocá-lo na bolsa, ela ME colocou na bolsa. Fiquei muito chateado com essa atitude ingrata, mas achei que ela estava apenas testando o “novo modelo antigo”.
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Três dias se passaram até que finalmente minha dona se lembrou de mim e me pegou na bolsa. Fiquei tão aliviado! Fomos andando pela casa, no banheiro, no quarto, até que eu vi uma coisa que nunca mais me esquecerei: O “novo modelo antigo” estava jogado no canto do sofá, como EU costumava ficar de vez em quando! Minha dona se despiu de mim e me colocou no criado mudo, e a partir daquele dia, nunca mais me usou para sair ou mesmo para assistir a caixa quadrada. Percebi que eu tinha me tornado um “modelo antigo”. Hoje eu fico quieto, esperando o dia em que, "sem querer", ela me pise e me jogue no lixo.
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Revisada em 30/09/2007

Um comentário:

Jota Brasil disse...

Legal reler este texto...faz lembrar os velhos tempos do P.M....lebro-me que quando tu postou esse lá, eu tinha esquecido meus oculos no serviço...tive q ler no pc a distancia pq não enchergo de perto hehehehe
Abraço, carcamano...

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